terça-feira, 13 de maio de 2014

A dor do amor e do carro que passam

Crônica da jornalista Marcela Rangel publicada em maio de 2014 no site Contra Pauta ,que demonstra a angústia causada pelas sinaleiras.


Grande perigoso mar fabricando um homem… Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso…” Rubem Braga 

Estou com mania de palavra emprestada. Talvez porque tá doendo tanto que não dá nem pra dizer. O jeito é sentir mesmo.Eis o que acontece, meu amor. Mensagem de carinho por celular é migalha das mais pobres, é sujo, é ferir acarinhando, é apedrejar afagando e escarrar beijando. Se estou lindinha, como você diz, que gentileza sua dizer, retribuo com um obrigada, que nem esse sei se devo escrever.
Mas estou é quebrada por dentro mesmo, não é lindinha não. Despedaçada, com uma saudade enorme e um ferimento dos piores, como uma dor de cabeça leve, mas que nunca passa.
Melhor mesmo é ter enxaqueca ou não ter nada. Mas essa dorzinha que parece não ter hora pra acabar enlouquece. É como as sinaleiras das garagens, que tanto incomodam minha amiga. Para cada tipo de apito ela tem uma dor de cabeça específica em cada lugar da cabeça. E é insuportável. Pi daqui pi dali pi do outro lado. Desse jeito. Aliás, as sinaleiras me incomodam também. Só que eu, diferente de Natasha, eventualmente me acostumei ao som irritante ao ponto que quase não percebo mais. Mas para ela aquele barulho significa dor que não tem fim. Tanto que mesmo quando não estão tocando ela escuta, sonha com elas e acorda assustada.
É impossível desligar o som das sinaleiras de garagem que avisam que o carro passa, que se não tomar cuidado, pessoa que vem e vai, você é atropelado, cai, machuca. É impossível porque ele está dentro, apesar de fazer questão de gritar pra fora. É assim também a minha dor diária. Dá medo de enlouquecer mesmo, Tashinha. Você reclama com a síndica, eu reclamo com o psicólogo, você alerta os moradores, eu alerto os amigos, você chora as pitangas com seu marido, eu choro no travesseiro, você quer protestar, eu também – “como assim não deu certo?” “Esqueçam essa história de amor”, diriam meus cartazes de mulher mal amada.
Mas não tem jeito. Muitas vezes é preciso aceitar que as sinaleiras vão, de tempos em tempos, incomodar e essa dor também. Mas que fique mais espaça, por favor, peço, com humildade. A gente é mais forte. Fé em Deus que um dia acordo sem essa dor e você sem o barulho que insiste em dizer que o carro passa, assim como tudo na vida, só que sem aviso.

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